domingo, 3 de abril de 2011

Bertazzo pop


O flerte com o teatro musical (Noé! Noé! Deu a louca no convés, de 2008) fez bem, mas também fez muito mal a Ivaldo Bertazzo, renomado coreógrafo brasileiro. Por um lado, possibilitou ampliar a técnica de seus bailarinos – e unificá-la – mas, também deixamos de apreciar no corpo de seus bailarinos seu método (reeducação do movimento) quase que puro.
Se houve encantamento com Samwaad (2003) ou Milágrimas (2205), quando as obras de Bertazzo ainda não eram apresentadas por corpos “profissionais”, depois de criada a companhia é uma sucessão de altos e baixos. Na obra de estreia, um bonito “Mar de gente” – mas que soava repetitivo a Samwaad e Milágrimas. O espetáculo atual é dos baixos, bem baixo. Chega a ser infantil, de tão bobo. E, além de tudo, a turnê é um legítimo engodo... A proposta – totalmente financiada pelo Fundo Nacional da Cultura – era percorrer cinco cidades brasileiras apresentando a obra “Corpo Vivo – Carrossel das espécies” e, junto com ela, fazer workshop de reeducação do movimento e lançar o livro “Corpo Vivo – Reeducação do Movimento”. A sensação que se tem, para quem conhece a técnica de Bertazzo e/ou fez o workshop é que “o que eu falo não se escreve”. Não se reconhecem, na obra, o corpo vivo e a reeducação do movimento. Para entender: o teórico Antonio Pinto Ribeiro nos apresenta dois tipos de corpos: corpo-livro e corpo-máquina. No primeiro corpo tem um lado mais comunicacional; no segundo, mais acrobático. No primeiro se vê um espetáculo. No segundo, show. Ora aquele que trabalha com educação somática – técnicas que visam prever lesões, mas também aumentar a expressividade – tem como pressuposto, geralmente, um corpo-livro. Era o que víamos até “Mar de gente”. Não é o que vemos em Carrossel...
Além de não reconhecermos a proposta da Bertazzo em cena, o espetáculo é também um engodo por outro motivo: nos vende o que não mostra. Ou seja, propaganda enganosa. Não há no programa, release ou outro meio de comunicação a informação de que se trata de um teatro musical. Vamos ao teatro pensando em ver a reeducação do movimento em cena e uma obra de teatro e dança – uma vez que é o nome da companhia. Mas não teatro musical, que é um gênero específico das artes cênicas.
Somos enganados. Mas o pior está por vir. Tudo bem que seja musical, mas que seja bom!!! Não é o que se vê em cena. O texto é bobo e a direção quer ser didática, mas estraga tudo. E o mais engraçado é que o espetáculo começa “sério”, com cara de Bertazzo do tempo de Samwaad: o palco está vazio e apenas círculos de luz ao som de “Sons do Corpo Vivo”, de Ruben Feffer. Entram os bailarinos em cena, com roupas em tons pastéis e movimentos harmônicos, de uma grande beleza na cena “O peso da elevação”, em um jogo de pesos – com sacos de areia ou algo parecido. Até ali, tudo é bonito e harmônico: corpos, cenário, figurino e trilha sonora (exceto que, por vezes, assim como no balé clássico ele reforça a música com o movimento, algo não mais usual na dança contemporânea. Mas tudo bem, por esta cena dava para dar uns oito de nota). Em seguida, no entanto, descamba: “O conselho de um pássaro” traz o ator Rubens Caribe como um velho monge contando (com microfone!) que um dia um pássaro falou para ele prestar atenção nos animais e, outro monge, antes de morrer diz a este que não havia entendido nada. Como um monge fica anos em um mosteiro e não evolui? Verossimilhança, para que?
E a partir daí começam as cenas dos animais: coreografias intercaladas por “esquetes”. A dança fala por si. Não precisa de um texto que não esteja no corpo. O carrossel de Bertazzo podia ser apenas dançado. Assim, quem sabe, se salvaria. O texto deste teatro musical é muito pobre e o pretenso didatismo nos chama de burros. O ator apresenta as danças com “enigmas”: o que é o que... e em seguida vem o corpo de baile dançando algum animal.
Mas nem tudo está perdido. O interessante nas cenas coreografadas é perceber a limpeza do movimento (que pode ter vindo muito mais da técnica do balé clássico do que do “método de reeducação do movimento”) e a uniformidade do grupo. Na primeira obra, quando o grupo se profissionalizou, era evidente nos corpos a diferença dos bailarinos formados pelo projeto social e aqueles que entraram no grupo por audição. Daquele elenco original (de “Mar de Gente”) estão apenas sete dos 18 bailarinos da companhia. Mas não se vê, em cena, diferença técnica entre os bailarinos. Outro aspecto positivo do espetáculo (pensando em trajetória da companhia) é ver que estes corpos oriundos da “reeducação do movimento” conseguem mais que os movimentos sutis presentes em outras obras (a la dança indiana). O movimento dançado é mais vigoroso, com mistura de técnicas. Além do balé clássico vê-se também street dance, hip hop, dança flamenca, e a dança contemporânea é isso: convergência de linguagens e de técnicas. Mas, mesmo nas cenas dançadas, por vezes há pobreza.
São quase duas horas de cena – interrompida pela entrada de Bertazzo no palco que vai nos “ensinar a escovar o corpo, pois a técnica (usada em seu método) aumenta a circulação. Sinceramente, não precisava. Quem estava a fim foi ao workshop. Pois depois disso, o espetáculo continua, na mesma levada e o espectador vai se afundando na platéia. Enfim, vem a cena “O maestro e o coral dos bichos”, em que Caribe rege os bailarinos, com chapéus de bichinhos. Então a gente pensa: acabou, já estão todos aí... Este é grand finale. Mas ainda tem mais: “Pássaros e Monólogo do Homem” e então a platéia aplaude (a vontade era vaiar e, pasmem, em Brasília teve gente que aplaudiu de pé!). Estamos nos retirando quando o ator fala: Bônus. Oh meu Deus! E então Bertazzo nos chama de burros! Sim, pois o ator vai falando cada enigma e decifrando-o. Após cada fala, entra um bailarino carregando os bonecos dos bichinhos e, para finalizar, eles rodam (afinal, qual era o nome da obra? Carrossel de animais!). Não dá. A gente merece mais.
E saímos do teatro com a sensação: tudo bem, era de graça... Ops, não é de graça! Pior, é dinheiro público! E tem tanto grupo bom que não consegue patrocínio. Mas a grife Bertazzo consegue, mesmo que seja para nos apresentar uma obra medíocre. Afinal, ele é pop! Mas o espetáculo é pobre...
O grupo agora segue para Salvador, onde se apresenta dias 17 e 18 de abril, no Teatro Castro Alves. Não vá!!!