quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Beleza sem dor




Fazer uma nova versão para uma obra consagrada que, além de tudo, teve algumas versões magníficas é uma tarefa bastante difícil. Pois foi este o desafio a que se propôs Leonardo Ramos, diretor do Ballet de Londrina que estreou este ano “A sagração da primavera”, em cartaz na última sexta-feira (4), em Brasília.

Para quem viu a ótima versão de Pina Bausch, criada em 1975 e remontada em 2009, com apresentação no Brasil, a comparação é sempre inevitável e, apesar de Ramos não querer ter alguém como modelo, as referências estão todas lá. A abertura lembra muito a versão de Pina Bausch, pois o linóleo foi pintado de cor de terra – na releitura alemã, colocava-se terra, de fato, no palco. Do mesmo modo as bailarinas estão deitadas sob um pano cru com manchas avermelhadas – o tecido vermelho, em Pina Bausch é o que caracteriza a escolhida, o sangue da mulher que será sacrificada.

O início da versão de Londrina é uma pintura. Todas as bailarinas deitadas no chão, sob este pano – que, infelizmente, não tem mais serventia no decorrer da peça – numa espiral. Como se fossem flores – o filme “A Flor do Deserto” teria sido fonte de inspiração de Ramos. O figurino, de Ana Carolina Ribeiro, é todo cru, com manchas. Na essência, quer-se mostrar o primitivo. No cenário, espelhos inclinados sob o teto – que, dependendo do teatro, refletem completamente a dança, que ocorre muitas vezes no solo. Em um determinado momento, enquanto elas se movimentam, o reflexo no espelho, com as ranhuras no piso, é simplesmente lindo...

Em sua peça, Ramos optou por uma versão da música de Igor Stravinsky no piano, sem orquestra. Perde-se com isso, boa parte da força musical – considerada, em 1913, um ruído que, aliado às inovações na dança, mereceu uma vaia na sua estréia. Por outro lado, este arranjo lembra um pouco tangos de Piazolla e, esta mudança, se reflete na escolha da movimentação dos bailarinos – as linhas geométricas do clássico e uma inversão terra-céu. Ao contrário da primeira versão, de Nijinsky, em que os pés batiam com a música e o movimento era todo para a terra (de cima para baixo), na proposta de Ramos, são de baixo para cima. Os bailarinos estão no chão, mas seus membros buscam o céu... Há a dominância de quedas e lutas corporais. “Para que tanta violência?”, indaga alguém na platéia. Ramos optou por movimentos que lembram a violência do grupo catarinense Cena 11 – que estava também em Brasília, no mesmo final de semana. São corpos que caem, que se jogam, quase sem apoio – mas com técnica específica para isso – e que percutem no chão, contrastante com o piano musical.

A escolhida é, sem dúvida, que roupa a cena. Desde sua entrada no palco, sabemos que ela será a virgem sacrificada. Pena que, exceto a respiração ofegante, falte a ela e aos demais bailarinos a violência e a dor em todo o corpo – inclusive na face. Chega a ser contraditório com a proposta do coreógrafo. Temos, assim, uma beleza, sem dor.

Ramos optou pela violência nos corpos para evidenciar a crueldade desta escolha, ainda presente em muitas sociedades. Violência nas quedas e também nas aberturas das pernas – quase que esgarçadas, como que as virgens estivessem sendo estuprada. Movimentos no chão com abertura máxima – que parecem sapos – lembram, em muito, duas versões antológicas também: de Bejárt, em 1959, em que quase a dança faz referencia direta ao ato sexual, e de Preljocaj, de 2001 – que coloca a virgem nua sobe o gramado verde (referencia direta da abertura do espetáculo).