quinta-feira, 16 de junho de 2011

A difícil arte de contar histórias


Sem querer, ou talvez propositalmente, Deborah Colker criou um legítimo balé romântico – com direito a um ato branco – em Tatyana, sua mais nova produção, que esteve em Brasília no último final de semana. O espetáculo segue agora para Londrina (25 e 26 de junho), Joinville (20 de julho) e Porto Alegre (28 e 29 de julho).

A obra, considerada um balé contemporâneo, é para a coreógrafa o fim de uma trilogia, que começou com “Nó” (2005) e passou por “Cruel” (2008). Trilogia esta que marca uma mudança no pensamento coreográfico da companhia. Até “Nó”, Deborah primava por obras cujo vigor físico era o forte e que tinham como grande característica o deslumbramento pelo visual – tanto de cenários, figurinos, mas, sobretudo da movimentação dos bailarinos, que se jogavam em paredes, escalavam, caiam, etc. Era uma dança mais atlética ou aquilo que o teórico português António Pinto Ribeiro chama de corpo-máquina. Ou seja, o grupo tinha uma linha mais “acrobática” e, talvez por isso, a coreógrafa tenha sido chamada para compor para o Cirque du Soleil (Ovo, de 2009).

Em “Nó”, Deborah quis falar do desejo e, pela primeira vez, o grupo fez um trabalho de preparação que incluía o debate filosófico, a pesquisa – algo muito comum em companhias contemporâneas. A coreografia trazia bailarinos pendurados em cordas – ainda o atletismo – mas tinha um algo mais, que nos fazia sair do teatro pensando e não apenas deslumbrados – como estávamos acostumados. Deborah talvez começasse a buscar o que Ribeiro chama de corpo-livro, aquele que tem um algo mais comunicacional. A reação da platéia, no entanto, não foi das melhores. Muita gente estranhou e, mais ainda, em “Cruel”, quando o vigor atlético foi menor e ela nos trazia a crueldade humana na nossa cara, sem receios ou pudores. Neste espetáculo, as palmas eram reticentes... O público estava acostumado com o deslumbramento...

Agora, em “Tatyana”, Deborah faz as pazes com a platéia, mesmo sem o vigor físico de outrora, pois usa como elemento aquilo que ela melhor sabe fazer: o deslumbramento visual. O segundo ato, sobretudo, é de uma beleza que nos deixa boquiabertos – em certos aspectos, nos lembra a beleza da cena dos vasos, de “4 por 4” (2002). Não tem como não soltar uma exclamação (ou até um palavrão) ao final do espetáculo. É realmente deslumbrante (nota-se, não pelo conjunto, mas principalmente, pelo segundo ato). No entanto, apesar do encantamento , Deborah ainda tem dificuldades em contar histórias... Em Cruel, a dramaturgia era um dos grandes pecados da obra.

Desde que ela quis contar histórias, aproximou-se da técnica do balé clássico. O balé, como linguagem cênica, tem como características contar histórias e, para isso, usava não só a técnica da dança, mas também a pantomima. O grupo usava balé – a citada cena dos vasos, de “4x4” usa a sapatilha de ponta – mas, a partir de “Nó” a técnica fica visualmente mais presente, uma vez que o “atletismo” diminui. Em Tatyana há um avanço em relação à dramaturgia – principalmente no segundo ato – mas a dificuldade em contar histórias com o corpo, com a dança, fica evidente no primeiro.

A peça é baseada na obra “Evguêni Oniéguin”, do russo Alexander Puchkin. O livro conta a história de Oniéguin, um jovem abastado e entediado que vai para o campo e lá conhece o poeta Lenski, noivo do Olga, cuja irmã mais velha é Tatyana. Esta se apaixona por ele, que a rejeita. Anos mais tarde, ele a reencontra completamente diferente e, nela, vê o sentido para a sua vida. Era tarde demais. Em princípio, uma simples história de amor, mas que traz no seu íntimo questões muito mais relevantes, que passam pela personagem feminina – sobretudo de sua transformação.

Além das duas mulheres e dos dois homens – vividos por vários bailarinos ao mesmo tempo – a coreógrafa optou por trazer ao palco também o narrador, ou seja, o escritor. São cinco personagens em cena, vividos por vários bailarinos – e isso deixa a cena rica.

Assim como nos grandes balés, a obra começa com a apresentação dos personagens e, pouco a pouco a história começa a se desenrolar. E é no contá-la que Deborah se perde, buscando recursos que não seriam necessários, como a pantomima. A música – assim como se fazia no balé clássico – pontua o movimento. Desta forma, por exemplo, o deslumbramento de Tatyana por Oniéguin, se daria no movimento alegre, em consonância com o tema musical, não precisava explicitar em alguns gestuais. Por vezes, neste primeiro ato, a coreógrafa recorre a gestuais tão literais dos sentimentos (escrever com uma pena, para mostrar a carta, ou usar o punhal), que não eram necessários, pois a dança já falava por si só. A música, neste sentido, a cargo de Berna Ceppas – que optou por Tchaikovsky, na abertura do primeiro ato, Hardin, Górecki, Prokófiev, Stravinsky, entre outros, nesta primeira parte; e Rachmaninov, em todo o segundo ato – foi uma bela escolha (deixando de lado alguns tons pops e batidas comuns em outros espetáculos). Têm-se a sensação de se estar assistindo uma obra de balé clássico, daqueles chamados de “repertório”. O cenário – de Gringo Cardia – é uma grande árvore de metal, que serve para algumas estripulias – vindas do antigo atletismo da companhia – dos bailarinos. Neste sentido, podia inclusive ter sido melhor explorado.

É o cenário o recurso usado pela coreógrafa para fazer uma espécie de metalinguagem – quando a obra fala de si. Ela nos surpreende com um bailarino de cabelos louros, no papel do escritor, que lembra a autora do espetáculo. Em um dado momento, num truque de mágica, de ilusão proporcionada pelo cenário, é Deborah quem aparece em cena, como o escritor. Uau, ouve-se na platéia, quando se percebe o truque. O escritor, inclusive, por vezes, parece maquiavélico, manipulando seus personagens.

Quase no fim do primeiro ato, a cena do baile, por vezes, lembra – inclusive com o figurino de Olga – o espetáculo “Lecuona” (2004), do grupo Corpo.

O segundo ato começa como no chamado balé romântico, como um “ato branco”, com uma tela que enuveia a imagem. No fundo, em cima, como que planando no ar – em uma cena que lembra Giselle – estão as bailarinas. A própria transformação de Tatyana lembra a da obra de Coralli e Perrot. Este segundo momento da obra é de uma delicadeza ímpar, ao mesmo tempo em que gera uma magia e encantamento no espectador – inclusive com o uso, em alguns momentos, das sapatilhas de ponta. O devaneio em relação ao amor que não ocorreu – quem já não passou por isso? – e a rejeição, em que ela se mostra soberana, falam por si e deixam o público extasiado.

Fica, ao final, a dúvida: é apenas uma trilogia, ou Deborah vai, a partir de agora, explorar um novo fazer coreográfico?

Um comentário:

  1. Acho que gosto mais de Tathyana que de outras coreografias de Deborah Colker. É que ao contário do público, não me caem bem os deslumbramentos a que estão acostumados. Com todo o respeito, há gente que confunde balé com Cirque de Soleil (sem desprezar aspectos circenses que, de verdade, possam estar lá; também reconheço que fazer tais coisas custam muito ao corpo).
    Gostei do seu blog. cariños, fabi

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